domingo, 23 de fevereiro de 2014
Onde nos conhecemos
Eu lembro de virar a rua. O que seria simples, se não fosse para o lado errado. Fiquei perdido por pelo menos uma hora até descobrir que estava. Cidade nova, pessoas estranhas circulando. A mudança a menos de uma semana acrescida da comum falta de tempo fez com que eu lesse uma informação errada do mapa que procurei na internet. Uma rua de diferença e nenhum dos pontos de referência servia para nada. Insisti no erro: paguei o preço de não saber o caminho de volta.
"Eu devia estar naquela entrevista", pensei. E eu "devia" estar em tantos lugares. Por que não gastei mais tempo prestando atenção na instrução de como chegar?
Continuei seguindo, vi sinais onde não havia. "Quem sabe alguma coisa mudou. Provavelmente ninguém atualiza aquilo diariamente e de graça".
O céu estava fechado, naquele dia. Nuvens ameaçadoras e enegrecidas sobrevoavam os prédios antigos. Foi quando vi uma moça. Parei para observá-la e gotas pequenas e geladas de chuva tentavam, sem sucesso, esfriar meu coração. Ela e seu cabelo bagunçado, emoldurando um rosto corado e sardento, me conquistaram de longe, sem me ver.
Assisti enquanto ela pegava com cuidado as flores expostas do lado de fora da floricultura - prevenção tardia para a chuva, que já começara.
- Quer uma ajuda? - Ofereci com simpatia, aproximando-me.
- Depende. Tudo depende. Se não estiver perguntando só por achar que eu sou um esteriótipo de fofura e alegria, pode ajudar. Por que eu também canso, sabia? - Bravejou ela, num só fôlego, enquanto levantava uma caixa pesada.
Sem saber exatamente como responderia ao surto de honestidade, peguei uma caixa e a segui para dentro da loja.
- Achei sim. Esteriótipo de perfeita para mim. Mas a chuva já começou e você precisa de ajuda. Eu me perdi. Perdi a entrevista na qual eu devia estar há meia hora. Não sei nem voltar para casa, inclusive. Então, se importa?
Deixei a caixa alinhada com as demais e saí da loja para buscar mais uma. Ela me seguiu.
- Você pode, por favor, não se apaixonar por mim?
- Não acha que está sendo pretensiosa?
- Acho! Mas talvez parecer pretensiosa possa te fazer não se apaixonar por mim. Eu não consigo lidar com isso agora. - Enfatizou o não tanto quanto conseguiu.
- Podemos ter uma conversa normal de pessoas que não se conhecem enquanto guardamos as flores? Essa chuva deve aumentar.
Ela suspirou profundamente, fechando os olhos enquanto o fazia. Abaixou, pegou um vaso que orquídeas cor-de-rosa, cuja placa dizia "Pink Lady", perguntou o nome da minha rua e disse que sabia onde ficava, quando falei.
- E a entrevista? Era pra quê? Digo... com que tipo de coisa você trabalha.
- Contabilidade.
- Contabilidade? Jura? Não acha entediante?
- Já trabalho há anos nesse ramo. Além do mais, não dá pra ignorar o tempo gasto com faculdade, certo?
-Então... Contabilidade? Jura? Não acha entediante?
Reparei que minha cabeça havia tombado ligeiramente para o lado direito, como quem não compreendeu e está tentando assimilar, quando ela começou a explicar.
- Você não me disse como se sente. E essa é a única parte que conta.
- A verdade é que não foi a faculdade que escolhi. Minha família já possuía um escritório e todos decidiram que seria mais fácil se eu simplesmente continuasse algo já existente.
- E se mudou por quê?
- Eu preciso de um pouco de espaço, na verdade. Não sei se gosto da ideia de ter a vida inteira decidida.
- E veio para uma cidade diferente trabalhar com... contabilidade?
- É a única coisa que sei fazer!
- Você não faz o menor sentido. Veio, como se quisesse mudar mas na verdade vai continuar se escondendo no futuro já decidido. Não importa onde você está desse jeito.
A essa altura, já não haviam mais flores para guardar e estávamos apenas nos encarando. Ela parecia tão irritada e eu nem entendia o motivo.
Discutimos até o início da madrugada. Foram horas de perguntas e explicações insuficientes. Parecia que ela simplesmente não aceitava meus pontos de vista como argumentos. Nunca tinha me sentido tão desafiado. Estava cego de vontade de provar o quanto ela estava errada, mas não estava.
Por mais que meus olhos focassem a boca dela, e o quanto esta não parava de se mexer, pensei em mim mesmo, atordoado. Somente com aquela conversa pude pensar e definir quem realmente sou e aquela cidade se tornou o lugar onde me conheci. E, por mais que possamos contar com a ajuda de alguém, cabe apenas a nós descobrirmos quem somos.
sábado, 8 de fevereiro de 2014
Ignorância
E então você se põe a falar por ela. Decide em suas próprias palavras a resposta para cada questão. Facilita o processo de compartilhamento assumindo que sabe tudo sobre o assunto. Sem saber que nunca irá realmente conhecê-la.
E então você esquece de analisar o silêncio. Perceber os trejeitos fora de foco; detalhes da tentativa de fuga. Você ignora o pedido de ajuda. Não para enquanto ela não pede. Mas e se a tolerância for maior do que tudo? Será que nesse caso a dor deveria ser desconsiderada em vez de evitada só por que pode ser suportada?
E então você se perde no seu próprio mundo. Aquele que só admite uma opinião correta. Até que alguém fale o que você deveria ter descoberto sozinho.
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